quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Estórias de um passado-presente (VI)

Sei que nessa noite saí de lá com a certeza que não voltava. Não para aquele sítio...
Sei que saí de lá com trezentos euros no bolso. E doía-me tudo. Mas ainda assim, tinha percebido que em quatro ou cinco horas tinha ganho o mesmo que o mês inteiro de um qualquer part-time. No dia seguinte, voltei a percorrer os classificados do Correio da Manhã, em busca de algo diferente, menos soturno, menos estranho, porque não sabendo o que queria, sabia o que não queria. Encontrei, no meio de um sem número de anúncios que prometiam ganhos astronómicos, um que me chamou à atenção. Pedia "iniciantes, de 18 a 23 anos, para hotéis" e realçava que tudo o que ganhasse era para mim. Fugi para casa e telefonei. Do lado de lá tinha desta vez uma voz portuguesa, simpática, articulada, que me perguntou o óbvio e uma coisa a mais: porquê? Porque é que estava a tentar "entrar por ali". Lá expliquei, meia atabalhoada, sem querer alargar-me na minha privacidade. Combinado um encontro, desta vez num café algures em Campo de Ourique.
Na hora marcada lá estava eu, telefonema de localização feito, e tinha à minha frente uma senhora de meia idade, com um ar muito compreensivo e prestável, que depois de dez ou quinze minutos de conversa de circunstância, me explica as regras do jogo: só existiriam encontros em hotéis do centro da cidade, e nunca por menos que cento e cinquenta euros por hora. O que se passasse neles era problema meu e não dela, pelo que não devia ligar-lhe a relatar coisa alguma, boa ou má. Dizia ter muitos clientes importantes, que não podiam arriscar serem vistos a entrar num prostíbulo, e por isso preferiam tentar passar incólumes num hotel. Explicou-me que jamais deveria parar na recepção e pedir que me anunciassem, e que deveria ir arranjada mas com um ar casual, para não "dar nas vistas". Deu-me também um álibi, que jamais convinha desmentir, para não quebrar o personagem de não-profissional: trabalhava numa qualquer loja onde ela comprava coisas e confidenciara-lhe dificuldades, acedendo à sugestão dela de conhecer "um amigo solícito". Anuí ás condições que me foram propostas, segui novamente para casa, e esperei o tal telefonema.
Dois dias depois, o telefone anuncia-me que havia alguém que esperava por mim num hotel de Sete Rios. Tinha de chegar rápido, caso contrário ficaria sem efeito. Fiz um sprint entre chuveiro, cabelos, roupa e afins, chamei um táxi e fui... Tinha presente na cabeça uma única coisa: "será que é este o mundo de contos-de-fadas que eu li acerca de?"

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Estórias de um passado-presente (V)

Era chegado o dia em que eu já não tinha como arranjar subterfúgios para escapar. Tinha-me comprometido a estar ás 16h no apartamento, e além disso, tinha de começar a resolver a bola de neve que me levou lá e que se avolumava.
Passei a noite em claro, a ler tudo o que me aparecesse pela frente que pudesse preparar-me para o que seria aquele meu dia. De manhã preguicei entre roupa, cabelos, maquilhagem, e os atavios que achava necessários... Parecia que a minha indecisão em tudo o que eram pequenas escolhas era o reflexo mais óbvio da indecisão do propósito.
Pus pés ao caminho, e tentava não pensar. Tentava a todo o custo tornar-me uma folha em branco onde não se pudesse começar a escrever com algo a condicionar o rumo do texto.
Quando cheguei, fui apresentada à "fauna" local, que no dia anterior não estava por lá. Uma miuda bonitinha, cujo nome não recordo, e exageradamente simpática, com a qual não tive tempo de conversar por mais de dez imnutos seguidos porque estava num corropio de marcações e atendimentos. Uma tipa com o maior ar de janada da história, que se abandonava a não-sei-onde numa das espreguiçadeiras da sala de espera. E a madame...
Tentava articular perguntas que me parecessem coerentes com as minhas dúvidas. E lá me foram explicando o que queriam dizer cada vez que atendiam o telefone... E entretanto, uma hora volvida, a Madame achava que eu já estava suficientemente esclarecida e pronta para ser "largada" ás feras. Perguntou-me que nome queria que me chamassem, e eu - tonta - disse-lhe o meu. E ela pergunta-me qual era o meu nome de baptismo, ao que eu lhe respondo que tinha acabado de lho dizer. "Não pode ser, podes ter problemas... ninguém usa o nome verdadeiro!". Naquele momento, numa conjunção de acasos, começa a tocar na TV "Luís Represas - Mariana". Mariana era um nome com o qual eu vivia - no papel - desde há muito tempo. Fez-me sentido. E ficou...
A campainha toca... eram "clientes dos táxis". Três amigos, e duas meninas disponíveis. Lá me apresentei, a tremelicar e meia aparvalhada. Eram emigrantes no Reino Unido, e estavam de férias. Dois deles decidiram que partilhariam a mesma menina, e o outro calhou-me a mim.
Percebeu que eu estava terrívelmente desconfortável... Percebeu que estava assustada, e tentou acalmar-me. Foi simpático - acho -, e tentou dizer-me que se precisasse de ajuda para não continuar o procurasse. Ignorei tudo. Despiu-me, beijou-me o corpo, e seguiu... Recordo-lhe o rosto e as mãos ao ponto de o poder desenhar! Mas não me recordo de mais nada. Fiquei em choque, quando terminou, e acho que nem sequer o acompanhei à porta, despedi ou coisa que o valha. Fiquei ali, recém-nascida e sem saber o que estava sequer a sentir. Refugiei-me no cigarro, e desliguei a mente.
Sei que nessa noite saí de lá com a certeza que não voltava. Não para aquele sítio...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Estórias de um passado-presente (IV)

Travessa Henrique Cardoso.
De telefone em punho, era guiada até à porta que havia de abrir uma parte do meu destino.
Toquei, abriu-se a porta do prédio, e tenho ideia de ter descido a uma cave. Tenho ideia, porque, de facto, não me lembro. Os pré-conceitos que tinha até então começaram a desfazer-se, mas eu não queria naquele momento percebê-lo. Era mais fácil achar que "isto não é o que parece".
Quem me recebeu - a madame (conceito que só entendi muito mais tarde) - era uma roliça figurinha, com um decote para lá de generoso e um vestido com um padrão... alegórico. Pôs-me a mão no ombro, e aproximou-me para me cumprimentar. Eu, alérgica a beijinhos e abracinhos de estranhos, fiquei meia aparvalhada e deixei-me ir. "Mas que raio?!?!?" - pensava eu.
A sessão de perguntas iniciada via telefone recomeçou. Pareceu-me interesse em perceber se eu era de facto maior de idade, e se de facto era "verde". Tentei responder, não percebendo muito bem a razão do questionário, mas, ainda assim, não me pareceu que fosse "educado" não o fazer. Seguiu-se um despejamento de informação. E aí a cabeça deu um nó. Mais uma cartinha que saia do castelo racionalizado que eu construíra.
Foram-me explicadas as "regras do jogo". Existiam taxistas que traziam turistas até ao apartamento, e que eram recompensados por isso. Existiam anúncios no jornal, mas esses "pagavam mal". Convívio normal, 40€. Convívio completo, 60€. Despachar os homens o mais depressa possível, porque se aparecesse algum "cliente dos táxis" não podia ficar à espera. E os "clientes dos táxis" pagavam melhor. Cem ou cento e vinte euros, dependendo. Com esses não se podia ter pressa, porque se gostassem de nós seriam generosos. Se fosse uma hora, o valor duplicava.
Devo ter perguntado tudo e mais qualquer coisinha. Tudo aquilo me estava a fazer curto-circuito. Estava a tentar pensar no que se passava com os "clientes" enquanto fazia contas aos euros que tinham acabado de surgir na conversa. Somava e subtraia-me enquanto tentava processar o facto de, não tardando muito, ter alguém a entrar pela porta que eventualmente quereria deitar-se comigo.
A conversa era interrompida pelo toque da campainha. Era um dos taxistas que viera falar com a C.. Lembro-me de estar encostada a uma mesa na cozinha, e, enquanto ela ia buscar qualquer coisa para lhe entregar (presumo hoje que o seu quinhão no acordo), ele dirigiu-se a mim. Tocou-me na anca, e disse-me que "um dia destes venho para estar contigo". Tremi. Tremi mais que alguma vez me lembro de ter tremido na vida. Eu era aquilo que até hoje gosto de catalogar-me como "patinho feio". E aquele homem, que na altura me pareceu asqueroso, dizia-me taxativamente que queria qualquer coisa comigo. Não era um príncipe encantado charmoso e cheiroso, como os dos relatos das meninas das revistas. Era um homem "normal", igual à maioria dos homens por quem nunca me passaria pela cabeça até à data ter qualquer tipo de envolvimento com. O que senti na altura (e confesso re-sinto agora ao lembrar) não cabe em nenhuma das dicotomias que uso para descrever sentimentos.
O meu estômago que se queixava desde que decidira sair de casa em busca do que achava que me servia naquele momento protestou com uma vêemencia tremenda. Senti-me mal, e pedi para começar no dia seguinte, com a desculpa que não tinha planeado ficar tanto tempo fora. Ficou aprazada a volta ás quatro da tarde, e até à meia-noite. Saí dali confusa, inquisitiva, a precisar desesperadamente de respostas aos trocentos pontos de interrogação que tinha dentro da cabeça. Voltaria, então, no dia seguinte... Fui para casa a perguntar-me se sim. E acho que só tive certeza, quando toquei novamente à campainha.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Estórias de um passado-presente (III)

A decisão estava tomada. Passei sei lá quantas horas de volta de blogs, entrevistas, sites, classificados... Como sempre na minha vida, achei que estava a munir-me de informação que me permitia racionalizar o que se passaria doravante. Boy, I was wrong!!!!

Depois de andar durante dias a ler os anúncios que pediam "acompanhantes", "colaboradoras", "massagistas", no Correio da Manhã, reuni dois ou três que me pareciam adequados. O que acabou por ser o escolhido rezava qualquer coisa como: "Acompanhante, iniciante, casa antiga com clientes estrangeiros". "Estrangeiros restringe o risco de encontrar alguém conhecido. E eu falo inglês fluentemente, não deve haver problema". Liguei. A voz do outro lado tinha um sotaque açucarado de terras de Vera Cruz... Fez-me meia dúzia de perguntas que não recordo. Debitou-me uma morada e um número de telefone e disse-me que aparecesse a meio da tarde, porque segundo ela seria a melhor hora para conversar com calma. Engoli em seco não sei quantas vezes enquanto me vestia e maquilhava para sair. Devo ter mudado de roupa umas dez ou doze vezes, porque não conseguia estabelecer qual seria o figurino mais adequado à "entrevista". Meti-me nos transportes e fui... com o estômago embrulhado com que fico sempre que me sinto ansiosa... Pelo caminho, de phones nos ouvidos, tentava perceber se os alguéns que me olhavam percebiam o ponto de interrogação que tinha dentro da cabeça... até hoje não sei a resposta.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Estória de um passado-presente (II)

Março de 2007
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Dezoito anos e seis meses, ainda abananada por uma maternidade demasiado precoce, não fui capaz de desistir daquilo que eu entendia como "ser eu". E "Eu" gostava de música, de livros às dezenas, de comer coisas estranhas e em sítios "cool", de ser adulta desde muito cedo - com direito a charutos e whisky que deixavam meio confusos os que me rodeavam, para meu gáudio. De teatros, espectáculos, telas e partituras... Gostava de ir onde me desse na telha, com quem me desse na telha, porque sempre até então tinha tido liberdade e euros no bolso que mo permitiam. Nunca liguei grandemente ás calças X ou casaco Y (esses gostos adquiri-os mais tarde...). Gastava, portanto, as minhas mesadas em tralhas inúteis à maioria das miúdas da minha idade. Afinal, os livros - em conjunto com os grandes óculos que sempre usei - não eram "fixes". Sabia mais depressa a capital do Sri Lanka que o nome do último "it boy" da TV. E isso fazia de mim uma freak...

É imensamente mais fácil camuflar-se o que comigo se passou naquele Março quando se vive numa "ilha". - "Afinal, se ninguém nota, não existe, certo?" - E, confrontada com um cataclismo, resolvi não resignar-me. Achei que podia solucionar os meus problemas como as moças que davam entrevistas à Sábado, Visão e que tais. Era novinha, não era assim muito feia, sabia falar e conversar sobre tudo e um queijo. E era isso que se lia na altura... a maneira cor-de-rosa como as meninas falavam na imprensa dos encontros com príncipes encantados que lhes pagavam uma pipa de massa para serem "acompanhados" por elas. O lado físico, "animal", da coisa, era "menor". "Se elas podem, porque não eu?!?". Lancei-me à procura de respostas para as minhas perguntas: como, quando, quanto. Deparei-me com os blogs e sites pessoais das referidas acima. E comecei a juntar os pontos...

Estórias de um passado-presente

Preâmbulo:

Depois de um desafio lançado por uma amiga querida, decidi, também eu, partilhar pedaços - porque é isso que a minha memória permite que faça fielmente - da minha experiência como acompanhante. Pese embora me gabe desbragadamente da minha memória de elefante, existem lapsos temporais que não recordo claramente. Será pois, por isso, uma colecção de textos que reúnem as minhas experiências sem uma linha temporal rectilínea e progressiva.

Porquê? Porque talvez hoje, mais que nunca, quem se depara com esta escolha deve ter a liberdade de a fazer em posse de toda a informação possível. Porque embora eu não tenha um circo de horrores (porque comigo assim não foi) para contar, também não tenho memória de um mar de rosas. Porque sei que é fácil acreditar que é uma porta que se cruza sem nome, sem morada e sem passado, mas também sei que o caminho inverso faz-se transportando uma bagagem - que não cabe a mim qualificar enquanto narradora. Porque quando escolhi talvez o tivesse não feito se tivesse tido acesso à crueza que se impõe nestes assuntos - já que o fiz no "boom" dos "testemunhos" fabulados nos média e na internet. Porque, sim, sei que talvez seja catártico olhar para mim com a distância que o tempo permite e tirar conclusões dos quês e porquês.

Porque o meu passado define o que sou no presente. Porque ainda não fechei a porta com medo de imaginar - em vez de ver - o que está do lado de lá.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

...

O estrondo que resulta do encerramento de uma porta é inversamente proporcional à determinação empenhada em mantê-la fechada.